Estou em uma exposição do fotógrafo Penna Prearo. Sim, exposto em uma imagem. Na parede, imortalizado na minha juventude. A exposição traz uma ‘retrô-perspectiva’ de quase 50 anos de trabalho do profissional, sempre inquieto e inventivo. Minha relação com Penna veio de uma época em que eu trabalhava no departamento de comunicação de uma grande empresa, em São Paulo. Uma época rica em amizades com diversos profissionais: jornalistas, fotógrafos, diagramadores, revisores. Profissionais de mercado, de grandes jornais e revistas, que faziam também publicações institucionais de empresas com a mesma qualidade. E nós nos cruzamos. Do relacionamento profissional veio a convivência fraterna, visitas trocadas nas nossas casas; Cris, eu e Manuela…
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Mãos decepadas
[CONTO] Sua afinidade pelos outros não é assim tão aceitável, mas procura ser uma pessoa gentil. Um esforço, com certeza. Por Manoel Fernandes Neto Talvez seja mesmo falta de empatia o seu desinteresse por todos ao redor, mesmo em um lugar que fala tanto em amor; mas ele não se importa com os problemas alheios. De ninguém. “Cada um com seus,” pensa, impiedoso. Nem mesmo para a sua família ele oferece alguma trégua; pudera, deixou de conviver há muito tempo com todos. Sem pai nem mãe, desde muito jovem e, mesmo com aquela irmã mais velha da qual era bem próximo, hoje só a encontra em dias santos ou nem tanto.…
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“Demônio!”
[ CONTO ] Ela não sente vergonha de frequentar o centro espírita juntamente com os cultos da igreja. Por Manoel Fernandes Neto A palavra da amiga do culto, ou mesmo das amigas, veio bem forte na sua cabeça ao passar pela porta da casa espírita. Elas sempre voltavam ao mesmo assunto: o espiritismo era coisa do diabo; conversar com os mortos nunca traz coisas boas; só o espírito santo é de confiança. Mas ela já não era mais criança. Na igreja desde bebê, com todos seus ritos e batismos, já perto do 26 anos de idade, formada em psicologia, se perguntava que demônio tão silencioso era esse que todas as…
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Para descobrir que suas cãs estavam cada vez mais longas
Foto: Mari Lezhava (Unsplash). Um conto para tempos de isolamento. Por Manoel Fernandes Neto Mais uma vez o cartaz estava fixado. Ou nunca havia saído dali, já amarelado, colado na porta, já gasto pelo tempo: dizia que o retorno dos trabalhos da casa seria informado “pelas redes”. Mas seu celular mal dava para atender ligações, como receberia os tais comunicados? Perto dos 76 anos, aposentado, solteiro convicto. Um perfil padrão do senhor cidadão, dentro do tom: pagador de impostos, eleitor. Hoje, irrigava a vida com a alegria e a esperança, uma vez por semana, nas palestras, na visita à livraria do centro, nos abraços fraternos, nas conversas de outro mundo.…
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Cartas à Manu: lembre sempre do The Mountain Messenger
Querida Manu, Nunca podemos deixar de fazer o que amamos. Digo isso porque no decorrer de nossas vidas vamos inventando concessões por uma série de motivos. Muitas dessas para seguir um dos tantos padrões da sociedade. Mas também pela nossa própria covardia de traçar um caminho diferente. Nos habituamos a achar que tudo é chegada, não percurso, e estacionamos naquele lugar que não queremos perder. Moramos nele por um tempo e mesmo depois de termos a certeza de que não nos serve mais, continuamos no mesmo lugar para não perder o que achamos que conquistamos. Perder e ganhar. São dois conceitos vazios quando temos a perspectiva unicamente material. Tenho acompanhado…
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Faltou você em Açores
Querida Manu. Permita nessa missiva contar minhas mais recentes aventuras junto com sua mãe e Rafinha. Logicamente, com você mais presente do que nunca. Estive em um lugar em que respiramos cultura, alegria, nostalgia e memórias. Esses sentimentos têm o dom de nos manter vivos. Percebo isso desde o seu embarque há mais de um ano, naquele seu aceno das escadarias do avião que a levou para Irlanda; até hoje assisto a cena em sonhos ou mesmo quando acordo surpreso ao meio da noite. Tão pouco, mas saudoso, tempo de distância. Não nos cansamos de pensar em ti, falar de ti, contar suas histórias, novas e atuais, como os antigos…
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Moça de vermelho sabe morrer
Manoel Fernandes Neto É nova a sensação de acordar feito suspeito. Como cão vadio e sarnento, apesar de saber que possuo conta no banco, cartão. Créditos sob códigos. Gerente de plantão. Secretária gostosa e mentirosa me oferecendo cafezinho: “O senhor já tomou? Está fresquinho”. O néon da rua já apagou, mas ainda o tenho na íris. Tem colchão de palha, armário vazio, recepcionista desdentado e sonolento: descarado de beco. Tem privada com cheiro de urina e desejo, lençol com marcas de amores infiéis e gozos remunerados. Tem o detalhe. Barulho no corredor. Conversa entre homem e mulher. Só eu percebo o fino golpe de navalha no pescoço dela, que usa…
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O dia da morte
Manoel Fernandes Neto Nunca imaginei que lápides de bronze em campas vitrificadas fossem tão caras. Sou obrigado a me contentar com a caiação branca, daquelas que grudam na roupa em Finados. Enfim, regateio a melhor maneira de deixar minha derradeira mensagem, minha morada definitiva. Amanhã, estarei morto. Devo comprar fiado. Só assim deixo de pagar conta em dia, única preocupação nos últimos anos, em que acordei às seis, li meu matutino até às nove e na hora em que o banco abria, lá estava eu. Primeiríssimo da Silva. De alguma maneira gostava daquilo. Dizer o primeiro bom-dia ao caixa, contar as principais novidades da cidade. Vez por outra, ser convidado…
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Cartas à Manu: fragmentos de uma distância
Querida Manu. Pensamentos fragmentados. Rotinas incessantes. Um pouco de tudo, Manu. Fundo e raso. O céu e o charco. Erros e acertos e eu sempre a adiar te escrever. A exigência em demasia, inimiga da produção. Um caleidoscópio. Muitos recomeços, nada nunca bom. Acabei unindo tudo em uma única carta, a oitava, acho. Espero que te encontre bem, com Brunão e sua turminha de Dublin. Aqui, eu, Rafa e Cris cada vez mais unidos, com mais amor. Os meses passam, a luas se multiplicam, mudamos e renovamos. Lá vai um pouco de algo de cada coisa: Rotina A ética hacker foi pouco a pouco abandonada, ou melhor, colocada de lado.…
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Cartas à Manu: Um dia para celebrar a Unidade
Querida Manu Seu aniversário sempre foi especial. Sempre teve contagem regressiva, anunciação. E você merece todas as homenagens: que mulher tremenda que você se tornou! Já contei grande parte de sua história no Calhamaço de Viagem. Mas sempre tem algo a mais pra falar, não é mesmo? Hoje, acima de tudo, quero agradecer a você por ter me tornado um cara melhor a partir do momento que caminhei pelos corredores do hospital Santa Catarina, naquela manhã de abril; em que fiz aquele poeminha para você; em que me descobri imortal. Gratidão: não tem palavra mais verdadeira do que essa. Ser pai, de você e da sua irmã Rafa, renovou como…