Notas da história

Sobre o Tempo e Velhos Papéis

São Paulo, 19 de junho de 1994

IRMÃ MEIRE,

Remexo papéis velhos e me ocorre narrar-te os amarelados pelo tempo e com rasuras da alma. São poemas e anotações. Textos e colisões. Pedaços de tempo esquecidos em guardanapos e naquele papel com borda laminada que vinha dentro do maço de Hollywood. Alguns cigarros eram feitos nesse papel. Às vezes não fumávamos e escrevíamos poemas neles. A minha geração não ficou muito longe daquela rebeldia escrita em livros de história: sexo, drogas e rock’n’roll.

Quando ouço a Manuela chorar — com poucos meses — percebo como crescemos e nos agitamos por todos os lugares. Nem de motivos precisamos. Queremos o que sonhamos. Ignoramos se temos forças ou não. Nos superamos sobremaneira: o que parecia impossível no início hoje é perfeitamente sensato.

Ser pai é ser imortal. Nossos filhos jamais permitirão que a morte apague o que a gente foi um dia. Será deles o privilégio de contar a nossa história a outras gerações. Quem já não presenciou velhos anciões relembrando “causos” de seus pais. Será assim. Até mesmo essa carta que hoje te envio fará parte de alguma roda de amigos em algum tempo distante futuro.

O tempo é um paradoxo de sensações. Irônico. Ao mesmo tempo que envelhecemos e o nosso corpo vai se tornando mais lento, enrugado e engraçado, mais nos tornamos preparados para enfrentar as situações. Quanto mais perdemos o controle da carne, mais entendemos a alma. A nossa mente — em tese — não envelhece. O nosso coração é sempre um menino levado a abrir a porteira ao carro do boi.

Remexendo esses papéis velhos, verifico que hoje tenho alguns séculos de existência. Repare bem como o tempo age com a gente: alguém é capaz de afirmar que só faz dois anos que conheci a Cristiane. Pois temos a impressão de que a cada ano vivido corresponde a centenas de outros tomados de emoções.

O tempo é assim, ingrato. Quando não damos muita importância, ele caminha como um paquiderme doente, às vezes até para pelo caminho. Todavia, quando percebemos a sua importância, o tempo corre feito lebre pelo campo. Arrisco: cor de vento.

Sabe o que me ocorreu agora. Que você nunca leu um poema meu, de fato.
Não aquelas leituras infantis que fazíamos de tudo que era escrito por nós.

Hoje, te mando um poema atual, para que saibas que seu irmão virou poeta. O mais louco deles. Não aparece na televisão e na capa de revista do consultório dentário, mas nas cartas, que são pichações no muro do tempo.

Na relação Poeta/Poema
Não sabemos qual mistério existe,
Qual dos dois é criação,
Qual dos dois é criador,
Se é o poeta que inventa o poema,
Ou a poesia que inventa o poeta.
Nessa dúvida,
Tentamos superar tal indefinita parte do todo,
Saber o que é Poema,
Saber o que é Poeta.

Corremos dois riscos:
Descobrir que a poesia não existe,
Ou que todo Poema é Poeta.

06/1994

Imagem de Michal Jarmoluk por Pixabay

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