Notas da história

Dia de Ayahuasca

Por Manoel Fernandes Neto – Publicado originalmente em 23.01.2014

O fim de semana em que tive o meu primeiro contato com a “força”

Porto União, na região norte de Santa Catarina, está separada por uma linha férrea da cidade paranaense de União da Vitória, o que leva a população dos dois municípios a formar um único núcleo urbano. Mas é por outro limite, não determinado, que a cidade é considerada por muitas pessoas como a fronteira da experiência conhecida como “expansão da consciência”.

O ambiente é o Instituto Xamânico Porto União da Vitória, entidade fundada há mais de uma década e que tem a Ayahuasca, ou Daime, como “caminho”, “ferramenta”, de seus rituais; o momento da consagração da erva amazônica utilizada e difundida em diversas comunidades em cultos religiosos. O evento acontece a cada três semanas, em média, e envolve cerca de 50 pessoas de cada vez. No dia 18 de janeiro de 2014, eu fui uma delas.

Vale a pena o alerta, se você foi cativado pelo título e pela abertura: o texto tratará muito menos de “visões”, “viagens”, “barato” e mais de insights e vivências que ocorreram das 18h30, horário em que cheguei ao instituto, até as 8h da manhã do dia seguinte, momento em que saí. Entendo a internet como um ambiente enriquecedor mas, em muitos casos, com capacidade de banalizar assuntos que fujam a uma visão mecanicista; como tudo aliás em uma sociedade materialista. Acrescento, ainda, que dispensei detalhar o histórico deste chá enteógeno – ou seja, que “desperta o divino interior” – pois a Internet está repleta de boas bibliografias e depoimentos.

Neste sentido, também vale lembrar que estas vivências são individuais, intransferíveis, oriundas do Universo que é cada Ser. Improvável, senão impossível, ter experiências similares, pois elas são baseadas naquilo que de fato você é, nesta vida, nas anteriores ou no mundo astral. Participar, somente se você já tiver uma vivência profunda de busca interior.

Humildar

A raiz de tudo é a busca espiritual, e a Ayahuasca permite o acesso a este conhecimento, deixando para você a responsabilidade de como utilizá-lo. Você diante do Eu real, com conquistas e mazelas. Em uma entrevista recente, Alex Polari, um dos líderes da comunidade do Céu do Mapiá, no Acre, diz que esta busca está ligada ao propalado retorno de Cristo, mas em uma interpretação mais profunda:

(…) a segunda vinda, para mim, é essa revelação interna, o retorno do Cristo de cada um, essa espiritualidade enteógena, a experiência de sentir a divindade, a centelha sagrada que habita dentro da gente. E isso talvez seja a luz que precisamos para enfrentar o que vier por aí.

O instituto Xamânico Porto União da Vitória prima pela organização e dedicação de seus membros. Situado na área rural do município, cercado de vegetação, plantações de soja, matas e rios e córregos, isolado de vizinhos e curiosos, funciona em um rancho chamado de tenda, com um humilde e alegre espaço de cerca de 500 m², cercado por varandas. Uma construção de alvenaria, com teto de telha de barro e troncos de árvores, com pequenas aberturas de entrada de ar e saída da fumaça da fogueira das sessões. Após o fechamento dos portões, às 19h30, os participantes só poderão deixar as instalações às 7h da manhã do dia seguinte. Uma regra seguida à risca pelos coordenadores.

O ambiente é sincrético, naturalmente; a busca da espiritualidade passa por diversos caminhos. Jesus, Maria, o Índio, Chico Xavier, Brahma, figuras mitológicas, pirâmides, elementais, avatares esotéricos com mensagens fazem parte da decoração, o que pode espantar os mais racionais, em um primeiro momento, algo dissipado quando começa a interação com outros participantes.

Pessoas de vários locais estão presentes. De variadas idades, muitos jovens, maduros, idosos. Novos participantes e os mais antigos interagem em um ambiente de harmonia. Na chegada, nosso grupo é recebido pelos cuidadores e coordenadores. Cheguei lá por um convite da escritora e parapsicóloga Mirabel Krause e da agente cultural Adriana Simas, de Blumenau. Em Porto União, nos esperavam os amigos Atamiris, Daniel e Sidnei, antigos frequentadores do Instituto.

Logo na chegada, todos assinam um termo de compromisso e preenchem uma ficha de anamnese. Perguntas básicas sobre o estado de saúde do participante. É cobrada uma taxa de participação, direcionada à manutenção do local, preparação do Daime, do ritual e a alimentação dos presentes, que consiste na sopa com frutas servida antes da consagração e o café da manhã com pão, ovo mexido, café leite e frutas. Após as refeições, cada pessoa lava sua louça.

O lugar é assistido por diversos trabalhadores voluntários do Instituto. Autênticos cuidadores que merecem um item à parte no contexto. A estrutura montada tem o objetivo maior de oferecer tranquilidade aos participantes, em todos os momentos, mas principalmente durante o efeito da Ayahuasca. Quem conhece as obras do espírito André Luíz, pelo médium Chico Xavier, como analogia, pode ter uma ideia do que seja este auxilio às pessoas que experimentam algo novo, sem parâmetro do que vão encontrar. Um travesseiro quando a cabeça pende no vazio, um cobertor na agonia do abandono, um guardanapo quando as entranhas são expelidas, palavras de carinho e de conforto. Nenhum participante, após a ingestão do chá, se locomove sem ter ao seu lado um desses protetores.

O clima que antecede a consagração é de fraternidade e de descoberta. Troca de experiências entre os mais experientes e os da primeira vez. Existe um clima de leve ansiedade, mesmo aos mais experientes, pois cada sessão com o Daime é uma nova revelação, um reencontro consigo mesmo e isto vai de acordo com a vida mental de cada participante, além do ego.

Samael Aun Weor, pensador esotérico, expressa com muita propriedade a mudança que devemos proceder interiormente:

Precisamos quebrar o dito centro egoísta como se fosse um copo de barro. Temos de extirpar o eu com urgência para produzir dentro de cada um de nós uma mudança profunda, radical, total e verdadeira.

Com certeza, palavras sábias, que poderiam ser ouvidas como um salto para as nuvens, ou um pulo no abismo.

A hora

Após a sopa, o momento de entrada na tenda, mulheres por uma porta, homens por outra: uma breve palestra antecede a consagração. Luzes ainda acesas. O dirigente dos trabalhos fala da importância do autoconhecimento e do ambiente religioso para o consumo do chá. Explica de forma pormenorizada que saber quem somos é essencial para a construção de atitudes retas: reto pensar, reto sentir, reto fazer. Fala também que após a ingestão da Ayahuasca, não dá mais pra desistir; é como pegar um avião, não pode descer, não tem como parar. Um encontro consigo mesmo, algo que pode ser comparado somente com o instante da morte, com o desencarne. Fala das possibilidades de efeitos. Alguns vomitam, outros não, mas que isso pode ser encarado como um refinamento, algo necessário a ser expelido. Reafirma o que já disseram as pesquisas científicas: o consumo não prejudica a saúde. Mas também lembra que é indicado para quem quer a busca do conhecimento profundo, nunca por lazer. Neste momento o orientador pergunta se alguém quer desistir. Ninguém se manifesta, mas não tenho certeza se alguém não pensou nisto. Ele orienta que são duas doses, cerca de 200ml. Entre uma dose e outra, um tempo de aproximadamente uma hora e meia, mas a pessoa repete se quiser. Caso não queira, pode solicitar o colchonete previamente reservado e deitar-se em torno dos rituais que serão três nesta jornada: meditação, fogo, bailado. Todos com uma seleção musical, tambores ao vivo, e palestras gravadas, que tocarão até o fim dos trabalhos da noite.

Os copos são distribuídos. Homens e mulheres, separados no salão, fazem fila por gênero. Jarras de vidro com a Ayahuasca começam a ser despejadas nos copos. Pedaços de maçã são distribuídos, para aliviar o gosto. Todos são orientados a encher o copo e não beber, a voltar para a cadeira e aguardar. O chá, cor marrom, um leite marrom, para definição da textura. Todos em pé em frente à cadeira. Duas orações são proferidas, com votos de boa jornada. Um Pai Nosso e uma Ave Maria. Bebo em duas goladas. Um gosto ocre, além do amargo, indescritível. Coloco os pedaços de maçã na boca e mastigo lentamente. Um depois outro. Sento. Na minha cabeça, ainda fica ecoando a última frase da oração antes do Daime: “na hora da nossa morte…”, “na hora da nossa morte…”, “na hora da nossa morte…”. Reflito por um milésimo de segundo: “que o Amém não me surpreenda”.

As trapaças do Eu

Os primeiros vinte minutos após a ingestão do chá foram de completa plenitude. Uma alegria contida, as cores ficando cada vez mais vivas, as figuras do altar vivenciando meu momento, emanando luzes, Maria, Jesus, o Índio, todos orgulhosos de mim, tudo são cores, revelações, me sinto bem comigo mesmo, uma iluminação sincera depois de tantos anos de estudos e dedicação, algo que brota do interior, lá do fundo. Das minhas profundezas. “Puxa, como eu sou bacana”. Eu, a transformação viva. Eu, com o poder da floresta. Eu, imbatível; nada mais importante do que Eu… Eu… Eu… Eu…

O mergulho. A sensação de Paz dissipou-se em um suspiro. Algo incomoda. Meu corpo expande. Tento ficar na cadeira sentado, mas não consigo. Agito-me. Levanto. Reparo vultos de homens movendo-se em direção à varanda. Vômitos agora se misturam às cantorias, mais som do que elementos gástricos. A cada fechar dos olhos, fractais coloridos se multiplicam, esforço-me para ficar no chão, centrado. Vultos se movimentam ao meu lado, todos os lados; não diferencio se são da terra ou do mundo astral. Começam os insights. Por que tanta hipocrisia de achar-me transformado, se as chagas profundas insisto em manter? Por que tento espalhar a luz com tanta falsidade? Sinto-me sozinho, abandonado naquilo que sou. Preso em um vale revelador do meu caráter vampiresco. Um vômito arma-se nas minhas entranhas e vem com toda força. Nada sólido, algo etéreo, como um ectoplasma. Agito-me, um sopro no meu ouvido: “a respiração, controla a respiração”. Um anjo? Começo a ser desconstruído naquilo que penso que sou. Meu corpo desmantela-se. Choro, intimamente, no isolamento da minha pequenez. Oro. Conheço a força do arrependimento. Mas antes penso em desistir, em me entregar ao ocaso, por não achar-me digno de cada pensamento, texto, reflexão que já tive em nome do Mestre. Arrasto-me infinitamente pelas varandas no meio de outras pessoas. De perto, sempre um cuidador. Lembro-me do meu espírito protetor, peço ajuda. Tento manter na minha mente a imagem de Jesus. Oro. Rogo ajuda. Sei da força do arrependimento sincero. Fico neste processo, nesta luta interna durante um bom tempo, sem noção, caminhando nas sombras. Tento voltar para a sala de meditação, as músicas me envolvem, são agradáveis. Mensagens evangélicas e de transformação íntima me animam. Uma brisa: sim, sou capaz, imagino com humildade. Novos vômitos de ectoplasmas invisíveis. Idas e vindas para todos os lugares permitidos. Respiro, expiro, respiro, expiro. Novos insights me mostram um ser escondido sob minha feição pública. Um ser abominável. Consigo ficar parado por alguns instantes, voltam os fractais, a sensação de paz, de que algo é o começo. Peço um colchonete. Um cansaço me assalta. Já não luto mais. Entrego-me e sou auxiliado até um canto perto da porta, em que outras diversas pessoas já estão deitadas. Músicas e mensagens evangélicas me distraem. Tento me esquentar com minha manta. Sinto frio. Suplico outro cobertor, sou atendido. Minhas lágrimas caem. Suplico algo que aninhe minha cabeça, sou atendido. Choro com a beleza do auxílio. Novos insights mostram tantas mesquinhezas em que fui protagonista. Respiro e entro no ritmo da música alta. Os mergulhos vêm e vão, por ondas. Já os encaro bem, já quero aproveitar cada segundo em que sou desvendado a mim mesmo. Ruídos no chão, ouço com bastante clareza os pés se arrastarem. A cada pessoa que sai, a porta abre e sinto frio. Acendem a fogueira. As pessoas se movimentam para perto dela. Cheiro de galhos secos, queimados, toma conta do ambiente, saem pela abertura superior da tenda. Uma sequência longa de músicas e mensagens que falam direto com meu ser. Começa o bailado em torno da fogueira, dançam homens e mulheres. Uma sensação de paz e alegria no meio daquela tribo, em que alguns dançam, alguns mantêm o fogo, e outros descansam. Todos em um só Universo. Um sentimento de pertencimento me domina. Sei que estou no lugar certo. Com a família certa naquele momento. Não conheço em detalhe aquele que deita do meu lado, mas sei profundamente quem ele é. O vento da porta que se abre já não me perturba. O mesmo vento que há pouco me trazia frio, agora traz o frescor. O frescor de novos dias.

Transformar sempre

Padrinho Sebastião Mota, um dos precursores do uso da Ayahuasca, continuador da Igreja do Daime do Mestre Irineu, diz em um livro de memórias, que leva o nome de “Evangelho de Sebastião Mota”, algo importante em um dos trechos, algo esquecido nesses dias de luta por aquilo que não é nosso:

É preciso se desprender do corpo para conhecer a vida espiritual. Que cada pessoa tenha uma mente perfeita, um pensamento leal. Não pensar mal de ninguém, de pessoa alguma. Porque todos nós somos um só. Assim como és tu, assim como eu sou, todos são.

A sessão deve ter terminado às duas da manhã. Perdi a noção do tempo, mas não me lembro de ter dormido. Fiquei olhando para o teto da tenda, aguardando os primeiros sinais do dia, ainda ouvindo músicas, volume baixo, todos dormindo, ou apenas deitados. Uma leveza interior tomava conta de mim, sem ainda me dar conta do que tinha ocorrido, o que eu tinha vivido. Mas algo de novo estava presente, algo a pulsar em todo o meu ser. Nos primeiro raios, saí da tenda, já caminhava sozinho pelo aprazível local do instituto; uma intuição chegava forte: a experiência com o Divino se tornaria mais forte, de acordo com a prática do dia a dia; o ritual de encontro com a força será vazio caso não for acompanhado de atitudes diárias que me façam melhor. Muito mais do que um trilho de trem, esta foi a real fronteira ultrapassada na cidade de Porto União, no Instituto Xamânico Porto União da Vitória.

As pessoas começam a se levantar. Abraçam-se como peregrinos em busca, no caminho do saber. Sorriem, trocam experiências, tomam o delicioso café da manhã. Padrinho Sebastião Mota ecoa:

O momento é de unir o negativo com o positivo. Aí é que tá o espírito com a matéria, unidos!

Aí, o foco cresce muito mais. Só no que é negativo, não dá luz. No positivo, só, também não dá!

Tem de ligar os dois! Então ajunta todos os diabos que existe, não é? E ajusta todos com Deus, aí está.

Se for pra um lado, tem soldado vigiando, se for pra outro, tem soldado também. Então, anda direitinho na estrada para não se perder! A ordem é unir-se. O Eu Superior interno na sua casinha, na sua própria igreja, no seu próprio templo que é o corpo! Ele bem sentadão, no Trono, vendo tudo!

Links:

http://xamanismoportouniao.org.br/

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ayahuasca

http://pt.wikipedia.org/wiki/Raimundo_Irineu_Serra

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_Mota_de_Melo

http://revistatrip.uol.com.br/revista/208/paginas-negras/alex-polari.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Samael_Aun_Weor

 

 

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