Texto publicado na Revista Harmonia, no especial sobre “O Livro dos Espíritos”
O livro sempre esteve na estante, por muitos anos. O vi várias vezes nas mãos da Cris Cirne, ora em leituras, ora nos momentos de oração. Recebia meu respeito de sempre por credos, crenças, costumes e religiões. Em outras ocasiões, o encontrava sobre mesas, penteadeiras, suportes de cabeceira, em vários locais da casa, como se fosse muitos, mas era um. A capa já antiga: um céu interconectado por folhagens: “Allan Kardec” escrito na parte superior; “O livro dos Espíritos” centralizado verticalmente. Aqui começa uma história, uma em milhões nesses 164 anos: a minha.
Criado no catolicismo, ainda menino, queria ser padre. Meus pais e avós me apoiaram. Fiz a primeira comunhão em uma pequena igreja. Tenho a foto até hoje, escaneada: 100 crianças na escada da matriz. Aos 15, fui crismado pelo “padre Julio”, meu santo padrinho, com pompas de acontecimento, música alta, fila para tomar a comunhão, emoção na família.
Não sei de fato quando estive a deixar a religião de lado; na juventude, todas as descobertas, as aventuras e experimentos com a sexualidade e com as revelações. Aquele roteiro que todos conhecem. O fato é que desisti da vida no seminário bem antes de entrar na faculdade de comunicação social, quando comecei a ter contato com outras versões de religiões: da religião opressora, histórica; mas também de religiosos libertadores que levavam o pão, protestavam contra o sistema, queriam terra para todos e clamavam por revolução.
Tornei-me adulto com uma relação estremecida com Deus, ou divindade, ou tudo que possa representar uma causa primária de tudo. Mas o rompimento, sempre iminente, foi adiado diante da realidade onde o que importa são as escolhas focadas na busca do conhecimento e no bem comum. Aliás, curioso, algo similar do que penso hoje.
Convites e negativas
Minha esposa Cris Cirne sempre foi espírita, com cursos, ainda solteira, na Federação Espírita do Estado de São Paulo. Quando a conheci, eu tão agnóstico a visualizava com ternura a ponto achá-la ingênua, com seu otimismo diante da vida. Já morando em São Paulo, eu jornalista e ela acadêmica de design digital, unimos nossos espólios e compramos um sobrado na zona oeste da capital. Foi ali que aprendi a respeitar os encontros semanais que ela tinha com a doutrina, com leituras, orações, às vezes sozinhas, outras em grupo.
O livro na estante era como uma bússola diante de diversos convites de novas rotas a surgir para meu encontro com o espiritismo, muitos deles para reuniões de estudo em casa de amigos da Cris, que eu sempre negava. Um desses, não esqueço e nunca antes revelei em algum texto. Um encontro, breve palestra, com uma senhora, esposa de um falecido e iminente espírita, que eu nunca tinha ouvido falar. Novamente neguei prontamente em comparecer, vindo a saber muitos anos depois de quem se tratava: Maria Virgínia Ferraz Pires, esposa de Herculano Pires.
Crer e saber
Nas agruras diante da vida, ainda em São Paulo, insistia com firmeza em ignorar “O livro dos Espíritos” na estante. No entanto, por um período, mantive contato com religiões de matriz africana, onde passei bons momentos e fui consolado por amigos queridos. “Reza forte”, como dizia a Vó Maria Conga, entidade que encontrei e me orientou em várias situações difíceis na caminhada. Se efeito placebo ou não, o importante é que superei e prossegui com determinação.
Em 2002, em outra fase difícil, mudei-me para o sul do país, Santa Catarina, Blumenau; eu, Cris e a minha primeira filha, ainda pequena. Procurava um local para recomeçar, zerar a existência, como se isso fosse possível. Ver novas paisagens, ter novos amigos, encontrar novas oportunidades; mas algo embarcou na mudança: crises de ansiedade e a tão temida síndrome do pânico, que me consumia lentamente. De repente, o abismo: o mundo ficou mais vazio, tudo era inútil diante do nada que invadia como bruma meus dias e noites.
Encolhido na cama, a Cris entra no quarto e joga “O livro dos Espíritos” em minha direção: “Somente leia”.
Foram dias e noites com o corpo trêmulo, ardendo em febres inexistentes, a ranger dentes a cada questão de Kardec e às respostas dos espíritos. A Inexistência da morte, a imortalidade do espírito, que somos donos de nosso destino, que podemos começar hoje, ou a cada manhã, as múltiplas existências, a força existente no propósito da vida, a conexão entre o material e o espiritual, o universo povoado por seres inteligentes da criação, bons e em aprendizados. Tudo ali era água em que eu tentava saciar minha sede de sentido, acalmar meu desespero. Dias e noites com direito a alguns insights durante a leitura, um sonho, um cochilo entre os capítulos, talvez, eu fora do corpo sobrevoando o quintal: algo novo surgia dentro de mim, advindo da necessidade de crer, mas também de saber.
Livros e casas espíritas
Nenhum “O livro dos Espíritos”, ou quase nenhum, surge na vida da pessoa de forma completa sem uma casa espírita, e a minha estava ali, na mesma rua em que morava em Blumenau, o Centro Espírita Nova Era. Eu caminhei ainda cético, mas esperançoso, onde fui recebido com muito carinho. E aqui o destaque para a importância de uma casa espírita, sociedade, núcleo, grupo, federada ou não, mas balizada por Kardec. Eu buscava algo além do livro, buscava uma palavra amiga, uma acolhida, uma explicação a mais, um grupo de iguais. Busquei e encontrei.
Casas espíritas caminham junto com livros espíritas. Ambos consolam, mas nas casas encontramos quem nos ouça, quem nos abrace, quem nos complemente com mais conhecimento, quem compreenda as nossas limitações. E assim foi feito. Estava disposto a explorar esse caminho, como arqueólogo que busca dentro de si alguma delicadeza e transcendência. Foi o que de fato fiz depois que saí do hospital, pois após duas visitas ao centro espírita fui internado com apendicite supurada.
O mergulho
Após a cirurgia feita com urgência, a recuperação do meu corpo e do meu espírito foi lenta. Voltei ao centro e comecei a fazer cursos sobre “O livro dos Espíritos”, estudar as questões, me aprofundar nos temas. Vivi todas as fases do ser espiritual, tal como narra um artigo de Edson Figueiredo de Abreu, do “Espiritismo Com Kardec – ECK”. Minha fase de “Euforia e Encantamento” foi querer oferecer a todos um “O livro dos Espíritos” de presente; eu dizia “Deixa na estante”, o que muitas vezes me constrangeu pelas respostas que recebi de forma justa.
Após um tempo, resolvi ficar na minha, ao adquirir a certeza de que o aprendizado e caminhada são únicas e individuais. Mergulhei nas obras psicografadas de Chico Xavier. Finalmente, encontrei Herculano Pires; entre outros, descobri Léon Denis, Hermínio Miranda, Gabriel Delanne e Camille Flammarion. O OLE, já chamado pelas iniciais, sempre de cabeceira, revisitando questões e reflexões, mas também as outras obras deixadas por Allan Kardec.
Em “O livro dos Médiuns”, entrei em uma seara que conhecia ainda menos; em “A Gênese”, o aprofundamento ainda necessário sobre os universos e seus enigmas planetários; em “O Céu e o Inferno”, a compreensão da vida futura; e, em “O evangelho segundo o Espiritismo”, a religião vista como conquista moral de cada um. Sem contar os tomos da “Revista Espírita” que sempre me atraíram.
Hoje, complemento as releituras do arcabouço de saberes de Allan Kardec com livros e textos espíritas de autores contemporâneos e pensadores que disseminam seus conhecimentos sobre o Espiritismo, muitos desses, participantes do grupo “Espiritismo com Kardec – ECK”, seara em que tenho me dedicado a estudos avançados da doutrina.
O despertar do conhecimento
“O livro dos Espíritos” despertou também em mim, além das reflexões das questões intrínsecas da obra, desejo de explorar outras searas, de temas correlatos, a buscar novos dados e referências. A maior homenagem que fazemos ao OLE é contemplar a pluralidade e a liberdade de pensamento e pesquisa. E no início foram obras de Elizabeth Kubler-Ross, Ian Stevenson, Brian L. Weiss, entre outros.
Também me entusiasmei pelo estudo das religiões, com leitura de obras, e com algumas vivências, com a umbanda, candomblé, xamanismo, judaísmo, com cada experiência merecedora também de um depoimento. Hoje, vejo de forma natural os sincretismos e os rituais de todos os matizes, resultado da busca e da jornada de cada um, sem julgamentos ou delimitações intelectuais. A investigação não pode ter amarras. Nunca deixei de ser jornalista nesta busca.
Neste sentido, também explorei outros autores, não ligados à Doutrina dos Espíritos, mas que trazem reflexões sobre mística e ciência em doses instigantes para cada situação, como Fritjof Capra, Marcelo Gleiser, Amit Goswami, Stanislav Grof, Lynne McTaggart, Michio Kaku, Frei Betto e Leonardo Boff, entre outros, e também lembro de um livro que gostei muito de dois professores da USP, José Pedro Andretta e Maria de Lourdes Andreeta, com um título propício para os dias atuais: “Quem se atreve a ter certeza?”
Excertos e anotações
Meu encontro com “O livro dos Espíritos” foi a pedra angular do meu reencontro comigo mesmo, com a minha essência. Mas continua a ser um processo. Gosto de dizer que nunca terminei de lê-lo ou de estudá-lo. Sempre falta algo ou surge uma forma diferente de compreender. São 19 anos deste encontro, neste abril 2021, e talvez novas décadas ainda não sejam o suficiente. É um estudo de múltiplas vidas.
Nesta reencarnação, sou aprendiz, ainda com a necessidade de recorrer ao OLE todas as vezes que preciso tirar uma dúvida, incapaz de guardar o local exato onde está cada assunto.
Ainda guardo essa edição antiga da editora Lake, com tradução de Herculano Pires; é relíquia na minha coleção, me inspira e me inspirou nos caminhos e no despertar sem amarras, livre, no pensamento e nas ações.
Às vezes, ainda faço minhas leituras neste mesmo exemplar, que possui anotações indicativas a lápis em suas bordas, fruto daquele meu primeiro encontro; assim, separei três citações grifadas na conclusão de Kardec – sobre imortalidade, transformação e fé – para encerrar este pequeno depoimento, que era necessário tornar-se público em algum momento da minha trajetória, como um reconhecimento profundo ao esforço e trabalho do professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, dos médiuns e dos espíritos participantes.
A todos, minha profunda gratidão!
Anotação: “A Imortalidade do espírito”
“Demonstrando a existência e a imortalidade da alma, o Espiritismo reaviva a fé no futuro, reergue os ânimos abatidos, faz suportar com resignação as vicissitudes da vida. Ousareis chamar a isso um mal? Duas doutrinas se enfrentam: uma, que nega o futuro, outra, que o proclama e o prova; uma que nada explica, outra que tudo explica e por isso mesmo se dirige à razão.” (no item III)
Anotação: “Transformação interior do ser”
“Com o Espiritismo a Humanidade deve entrar numa fase nova, a do progresso moral, que lhe é consequência inevitável. Deixai, pois, de vos admirar da rapidez com que se propagam as ideias espíritas. A causa disso está na satisfação que elas proporcionam a todos os que as aprofundam e que nelas veem alguma coisa mais do que um fútil passatempo. Ora, como o homem quer a sua felicidade acima de tudo, não é de admirar que se interesse por uma ideia que o torna feliz.” (item V)
Anotação: “Fé racional”
“Seria fazer uma ideia bem falsa do Espiritismo acreditar que a sua força decorre da prática das manifestações materiais e que, portanto, entravando-se essas manifestações pode-se minar-lhes as bases. Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso.” (item VI)
Manoel Fernandes Neto é jornalista, curador de conteúdo, editor do Portal Nova Era
Texto publicado originalmente na Revista Harmonia, acesse abaixo: