Contos 2006

O dia da morte

Manoel Fernandes Neto

Nunca imaginei que lápides de bronze em campas vitrificadas fossem tão caras. Sou obrigado a me contentar com a caiação branca, daquelas que grudam na roupa em Finados. Enfim, regateio a melhor maneira de deixar minha derradeira mensagem, minha morada definitiva. Amanhã, estarei morto.

Devo comprar fiado. Só assim deixo de pagar conta em dia, única preocupação nos últimos anos, em que acordei às seis, li meu matutino até às nove e na hora em que o banco abria, lá estava eu. Primeiríssimo da Silva. De alguma maneira gostava daquilo. Dizer o primeiro bom-dia ao caixa, contar as principais novidades da cidade. Vez por outra, ser convidado pelo gerente para o café, discutir se a inflação vai cair ou ficar na mesma, quem vai ganhar a eleição ou qual o melhor time do futebol nacional; enfim, essas besteiras que não comprometem ninguém e fazem a gente tão feliz.

Morrer no dia seguinte é a melhor maneira de encerrar o mês. O ministro foi à televisão e discursou que vai acabar com as filas. Balela – meu bico de papagaio teve que esperar vinte e cinco dias por consulta no instituto. Isso porque o Sinval pegou a senha, pois nem saúde para enfrentar fila tenho. O Sinval é um cara formidável. Fiquei seu amigo logo que entrei na Companhia de Bondes. Ainda bem que morro amanhã. Se eu tivesse empacotado há cinqüenta anos não teria visto essa cidade antes da chegada do desenvolvimento. Do progresso. Se eu tivesse morrido em 1944 e não amanhã, como vai acontecer, não teria conhecido o Sinval. Quando fiquei viúvo, o Sinval foi o primeiro que chegou ao velório. Ele e a dona Barbinha. Tão simpáticos os dois. Gostavam tanto da minha patroa. Quando se tem data pra morrer ficamos logo lembrando dos entes queridos. Dos amigos e companheiros de todas as horas. Das confraternizações, festas e funerais. Das discordâncias, das rabugices, dos entreveros. Sempre fui osso duro de roer. Mas só discutia com Sinval. Talvez por saber que no dia seguinte estaríamos conversando de novo a caminho da garagem. Querendo saber o que havia nas marmitas. Teimando por coisas bobas. Se metendo na vida dos outros. Isso foi naquele tempo. Hoje, do Sinval pouco sei. Já eu, morro amanhã.

Meu lugar no cemitério é ao lado da minha esposa, cujo corpo já deve ter sido comido. Hoje mudei minha rotina. Se morro amanhã, provo que nunca é tarde para renovação. Não fui ao banco, não li jornal, acordei às oito. Vim direto pra cá. Não que eu ache que eu não vá gostar deste lugar. Minha mulher nunca reclamou. No dia dos mortos, a movimentação é um pouco maior, mas nada que atrapalhe muito. Fico pensando que, para as almas, o dia dos mortos deve ser igual à Páscoa para a gente. Ou melhor, dia de jogo de Copa do Mundo. Na maioria do ano, este é lugar sossegado. Já verifiquei. Tem quatro defunteiros e seis jardineiros que cuidam da manutenção. Enterramento aqui, sempre duas vezes por dia. Dez e quatro horas. De acordo com o horário da minha morte, devo pegar o funeral da tarde, quando as congratulações são bem maiores. Diversas vezes fiz isso na época em que trabalhava. O cidadão conhecido da gente morria e vibrávamos quando o enterro acontecia às quatro. Não voltávamos mais para o expediente e a falta era abonada. Se amanhã eu estivesse na ativa seria defunto concorrido. A Companhia de Bondes, na certa, iria parar. Amanhã, não. O que ainda existe daquela época é peça de museu e patrimônio do Município. Na verdade, já morreu. O próximo sou eu: amanhã.

Será que faz mal comer feijoada na véspera da morte? Creio que não. Contudo, deveria existir bula explicativa sobre os procedimentos para o momento de prestar contas ao Criador. O sujeito chegaria desenganado ao hospital e seria atendido prontamente. Se não houvesse escapatória, entregavam-lhe algumas apostilas e questionário para ser brevemente preenchido. Se o infeliz já não se agüentasse nas canelas, seria aplicado pacote de emergência para essas situações. É tão fácil organizar a morte de alguém.

Não acredito que o meu enterro reúna muita gente. Quando demoramos a morrer, logo entramos na lista dos que já morreram. É inevitável. Não temos o direito de não morrer. Somos acusados como se escolhêssemos ficar em cangalhos. Como se não preferíssemos morrer um tanto mais conservados e ativos. Se eu morresse logo após a minha esposa, teria deixado esse mundo como herói. Ainda tinha o meu emprego, e volta e meia meus filhos me procuravam para pedir ajuda. Passaram-se alguns anos, me aposentei, vendi a casa, cheguei na pensão, apliquei o dinheiro na poupança como faz todo ancião e fui esquecido. Me espantei ao descobrir que não podemos confiar nem no banco. Você deixa o seu dinheiro para ser guardado e quando percebe já não tem mais nada. É o índice que foi expurgado, a moeda que perdeu os zeros, a poupança que foi pra cucuia. Minha esposa me dizia sempre que o melhor investimento era em ativos imobiliários. Esperta, não perdia um noticiário sequer. Se ela não tivesse batido a alcatra, ou se eu tivesse ido no mesmo dia, não teria passado pelo vexame de depender desse minguado pecúlio e de viver em quarto de pensão.

Não faço idéia de que horas são. No passado, minha alimentação era sagrada. Imagina se eu ficaria sem almoço como hoje. Antes de ficar viúvo, meu ritual era jantar. Pratos e talheres bem arrumados, louças – presente de casamento com receitas de família -, toalhas impecavelmente limpas e cântaro de vinho para esquecer os problemas. Minha patroa lembrava de todos os detalhes. No almoço dizia: “Não tem jeito de escapar da marmita, mas na janta serás rei”. Tive o meu reino até o dia em que ela baixou nesta sepultura. Cemitério lotado e todo mundo querendo jogar a última pétala sobre o caixão.

Morro amanhã, mas tenho boas recordações. Éramos felizes. Mesmo depois de quarenta anos de casados fazíamos amor como os animais. Tínhamos o fogo dos descobridores, a sabedoria dos eternos, a perseverança dos convictos. Sobrepúnhamos ao nosso desejo arqueológico e éramos belchiores de antigos sentimentos. Sabíamos onde pisávamos e não tínhamos medo de escolher novos atalhos. Jamais consegui esquecer minha cara de espanto ao consentir que ela beijasse minhas partes íntimas. Passei quatro décadas de minha vida tentando me resolver com a questão, e ela me surpreendia com a resolução. Nos divertimos muito nessa noite. Nem dormimos. Ficamos confabulando, ao sabor de vinho, quantos anos demoramos para sentir na boca nosso sexo. Após a morte de minha mulher, comecei a colecionar revistas pornográficas. Das mais cabeludas. Gosto de olhar. Volúpia não é exclusividade de jovens. Homem com poucas riquezas, meu divertimento é imaginar todas as noites o que eu e a falecida faríamos se ela, como eu, morresse amanhã.

Parto e não deixo herança. De valor, só tenho TV preto e branco e rádio-relógio, presente da mãe do Sinval. Que ainda é viva. Tenho fotos e recorte de jornal em que apareço dirigindo o bonde. Tenho saudades dessa época, em que os carros de boi ainda dividiam lugar com os trilhos. Guardo, numa caixa de papelão exclusiva, meu uniforme de condutor, com quepe e tudo. A quem quiser, tenho a coleção quase completa de diversas revistas e recortes dos principais acontecimentos do século. Tenho o desembarque americano na Normandia, o dia da bomba, a visita do Papa ao país e alguma coisa sobre o homem na Lua. Podem ficar também com meu cinzeiro italiano que nunca usei. Meus charutos cubanos que não fumei. Meu vinho do Porto que não tomei. Já é final de tarde e não há mais tempo. Morro amanhã.

Ainda hoje passo na casa do Sinval. Falo para ele recolher o enxoval da falecida e presentear à dona Cotinha, sua mãe. Invento desculpa que é para mandar para lavadeira, que estou sem tempo. Sinval já quebrou o galho outras vezes. Quando ele voltar do meu velório saberá cumprir a última vontade do defunto.

O porteiro me avisa que o cemitério vai fechar. Levanto da campa que ocuparei amanhã, agradeço o aviso, tiro as manchas de cal com pequenas batidas de chapéu, e saio caminhando por sepulturas e mausoléus. Antes de passar pelos altos portões de ferro, arrisco última olhada. Agora, só entro de novo na urna. Escoltado por velas e lamentos. Morro amanhã e nem sei se já vou tarde.

Publicado no Le Monde Diplomatique

O dia da morte – Le Monde Diplomatique

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