Cartas à Manu

Cartas à Manu: Sobre paredes e metáforas

Querida Manu,

Todos nós estamos muito felizes com suas novas experiências em terras distantes. Seu avanço nos estudos, suas vivências profissionais, sua vida com novos amigos e amigas com quem instalou, recentemente, seu novo canto: uma casa encantadora em uma rua histórica de Dublin. Lá, estão sua estação de trabalho e o espaço para filmagens de seus vídeos.

Aqui, caminhamos mantendo o otimismo inabalável; o pensamento que cultiva a abundância de uma vida plena: materialmente, espiritualmente, socialmente. A viver cada vez com mais desprendimento, menos julgamentos a si mesmo e ao outro. Você sabe, dessa forma nossos passos são firmes na jornada.

Atrasei um pouco minha agenda de duas cartas por mês. A tela vazia e infindáveis atendimentos no escritório me colocaram, literalmente, nas garras da procrastinação. Mas comecei a reagir, sem pensar muito, e a colocar as ideias encadeadas para depois lapidar.

Algumas confissões tenho que fazer.

Ando com dificuldade em escrever, ficção ou não. Pudera, para quem sempre se interessou pelos acontecimentos do país, como eu, as coisas aqui são desalentadoras, por mais que não queira tocar nesse assunto. Mortes, injustiças, estupidez, desrespeito de parte da sociedade e homens públicos às mínimas conquistas iluministas dos últimos 200 anos.

Escrever nos liberta. Pelo poder que temos de construir uma narrativa transcendente, diferente das coisas do charco e da lama; lama no sentido de apegado ao chão, às coisas da matéria. Metáfora é algo perigoso por aqui; em que qualquer coisa que você publique transforma-se em objeto das mais estapafúrdias interpretações, quando não intolerância. Vivemos em um transe que não suporta fábulas. O anti-intelectualismo tomou lugares públicos e privados. Ler, estudar e sonhar passou a ser um movimento clandestino, como se um faminto leviatã estivesse à espreita por todos os lugares, em milhares de olhares de patrulhamento, sempre pronto a definir você. Por uma palavra, por um conceito torto. Pensar tornou-se um ato rebelde.

Li recentemente uma longa entrevista no El Pais, “O trabalho de um romancista é sonhar acordado”, com o premiado escritor japonês Haruki Murakami; quero compartilhar com você algumas sensações. Ele fala das definições do que é ou não estranho. De que pessoas podem achar uma narrativa estranha e outras, não. Essa capacidade de crer naquilo que escreve, independente do que vivemos na vida real. Daquilo que mexe com as nossas mais profundas estruturas emocionais. E que nos mantém vivos, apesar do entorno. “Sou quase um velho, mas ainda acredito que se pode atravessar a parede, e espero que o leitor também acredite,” nos entusiasma Murakami.

A realidade brasileira nesse início de 2019 é também de alguns povos que descuidaram de valores do espírito acima dos materiais. No nosso país, essa forma de pensar nos encurralou ao desprezar o estudo como meio pacificador, a cultura como aspecto libertador, a diversidade como vida criativa. As metáforas estão mortas, proclamam muitos; e o que ainda restava de atos civilizatórios em nossa sociedade tem desmoronado junto com a democracia sob o desprezo do grande público. A ordem do dia é o fim de tudo que possa parecer mais elaborado ou instigante.

Nesses tempos estranhos, me apego aos pequenos gestos. Leituras infindáveis, reflexões e longas caminhadas. Aprecio a indignação de amigos que estão na linha de frente das batalhas; dos artistas que ocupam as ruas; das minorias que erguem os pulsos. Apego-me nas imagens de seus passos pelas ruas de Dublin, você e Brunão cada vez mais apaixonados a descobrir o mundo, junto a outros cúmplices em comunhão. Também me envolvo em momentos singelos: nas aulas de violão de Rafaela na nova escola, nas tiradas e descobertas dela, sua curiosidade pela ciência e pela arte. Mas também fico atento às meditações diárias de Cris Cirne, um new age na veia a cada manhã. Mas não posso esquecer, Manu, da magia da minha rotina de supermercados, estripulias e banhos da Aurora, as conversas amenas com o melhor de cada um: a dona da banca de frutas, a caixa do supermercado, a atendente da padaria, o garçom do restaurante japonês. Redescobertas tão necessárias do cotidiano real, além das fronteiras digitais, conjunturais, nacionais, institucionais. Momentos em que podemos viver de fato.

Sim, Murakami tem razão: é possível atravessar paredes.

Beijo no coração, Papi.

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