Querida Manu.
Permita nessa missiva contar minhas mais recentes aventuras junto com sua mãe e Rafinha. Logicamente, com você mais presente do que nunca.
Estive em um lugar em que respiramos cultura, alegria, nostalgia e memórias. Esses sentimentos têm o dom de nos manter vivos. Percebo isso desde o seu embarque há mais de um ano, naquele seu aceno das escadarias do avião que a levou para Irlanda; até hoje assisto a cena em sonhos ou mesmo quando acordo surpreso ao meio da noite. Tão pouco, mas saudoso, tempo de distância. Não nos cansamos de pensar em ti, falar de ti, contar suas histórias, novas e atuais, como os antigos navegadores que cruzavam os mares, mas mantinham mentes e corações na origem de tudo.
Essas analogias ressurgiram com força em um encontro que reuniu amigos, associados e seguidores para comemorar os 20 anos de fundação da Casa dos Açores de Santa Catarina, em Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis-SC. Faltou você para viver a experiência que eu Cris e Rafa vivemos. Um desfilar de tradições que nos levou ao passado e valorizou nosso presente em uma noite em que a simplicidade e a elegância nos trouxe o real espírito lusitano de antepassados; nesse caso específico, de açorianos que chegaram a Santa Catarina há mais 270 anos.
Saudades e sonhadores. Quando nos afastamos da nossa origem, trazemos ainda mais nossa origem para todos os lugares em que caminhamos. Você sabe disso e me fala sobre isso. Das coisas que guarda do Brasil, dos sabores e paladares que lembra pelas ruas de Dublin, dos amigos, da sua aurorinha sempre pronta a receber um petisco. Dos nossos dias pelas ruas da cidade a contar episódios, construir estratégias de vida, desenhar narrativas imortais. Dos nossos cafés da manhã recheados de notícias do Brasil e do mundo.
Saudades, sonhadores e trovadores estiveram presentes nessa noite de Luz com a boa música que fala do mar, das canoas, das pescarias, mas também de amores conquistados ou perdidos, ou mesmo com o “Terno de Reis”, com a música batida no tom do coração, cantada e contada com a alegria melancólica, a lembrar a fé dos Reis Magos que trazem a boa nova da chegada do Amor que é Verbo. Manu, em cada instante, pude ter a certeza de como nossas convicções são essenciais para nosso vôo. Mas também da inevitabilidade do sentimento de pertencimento.
Como já te expliquei, a Casa dos Açores é um associação que mantém vivas as chamas da cultura e da história. São poucos os sócios, mas centenas de seguidores que colaboram de outras formas para que as iniciativas tenham profundidade e ganhem destaque.
Você sabe, Manu, a festa ocorreu no Engenho dos Andrade, um lugar com duas edificações construídas em 1860 e que virou espaço cultural por iniciativa da família do patriarca Agenor José de Andrade. Foram mantidas as instalações originais da casa e do engenho de cana e farinha. Para você ver tantas experiências que fizeram parte da noite, ocorreu a produção de farinha no mesmo local e cada um dos presentes pôde levar seu quilo do produto, a lembrar os tempos antigos. A “Farinhada”, como é conhecido esse tipo de produção, também abre uma outra festa, a do Divino Espírito Santo, em Setembro, a principal do local desde os primórdios da então Freguesia de Santo Antônio de Lisboa.
E foi ali no engenho de farinha que foi servido nosso jantar, e logo após a “ordem” a Rafaela saiu correndo para ser a primeira a ser servida. Eita menina com fome. Mas valia a pena, pois o cardápio era todo açoriano: arroz, feijão, galinha caipira, linguiça com cebola, mandioca, estopa de cação e pirão branco. Comemos felizes, em uma experiência nova para nós: em um alguidar açoriano. Um prato, de barro, profundo, que mantém a comida sempre aquecida, como o coração dos açorianos, que conversavam alegremente na fila da refeição, a contar casos antigos e viagens recentes ao arquipélago. Uma busca rápida no Google e encontro uma notícia no Diário de Notícias (DN), de Portugal. Ricardo Simas, oleiro há 23 anos, proprietário da Olaria de São Bento, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, em Açores, fala do barro, e da receita de Alcatra, que só fica perfeita com o alguidar.
Manu, a verdadeira cultura é assim. Ela é formada e fomentada por depoimentos, pequenas histórias, eventos como esse que participamos, momentos que passam a ser contados, de boca a boca, pelas ferramentas de comunicação instantâneas. Ou por cartas a filhas queridas como você, tão distante, mas tão presente.
Passamos algumas horas com outras famílias em Açores, onde não faltaram a alegria, a rendeira, a tarrafa sendo confeccionada, o arroz doce no final, o boi de mamão. Mas também a tenra saudade de terras distantes, no sotaque tão conhecido por mim e suas tias, na convivência com meu pai e minha avó. Faltou você, Manu. Porque sei como estás a admirar as novas descobertas, em tantas terras que já conhecestes. E que em breve estaremos juntos para conhecer outras. Faltou você, Manu, mas sei que ficas feliz em ver a gente descobrindo e redescobrindo raízes, história e novos sentimentos.
Fique bem, beijo estalado!
Para saber mais:
Prato gastronómico típico da ilha Terceira, nos Açores, mantém olaria aberta
https://www.dn.pt/lusa/prato-gastronomico-tipico-da-ilha-terceira-nos-acores-mantem-olaria-aberta-8911293.html
Casarão Engenho dos Andrade
http://m.engenho-dos-andrade.webnode.com/historia/
Entrevista com Sérgio Luiz Ferreira: Devoção e valores universais nos 20 anos da Casa dos Açores de Santa Catarina
https://www.revistanice.com.br/devocao-e-valores-universais-nos-20-anos-da-casa-dos-acores-de-santa-catarina