Um breve momento de amor

Por Manoel Fernandes Neto

Querida Manu,

Por que escrever cartas? Escrevo cartas para te manter perto. A distância física pode, sim, ser amenizada pelas palavras. Só hoje, depois de seis dias do seu embarque, consegui escrever.

O mundo novamente te recebe, Manu. Entendo que nada impede o fluxo da vida; e a vida pulsa em seu caminho. Ninguém pode atrasar seus objetivos. Novamente você entra no avião, acena, e tudo flui. Na primeira vez, em 2018, escrevi um livro. Era necessário um inventário do que vivemos. Na ocasião, eu procurava um texto, uma forma de me expressar, depois de tantos projetos interrompidos. Falei da nossa história, da nossa vivência, das experiências da nossa família. Em Calhamaço de viagem almejei falar sobre o que não tive tempo. Coisas importantes que eu vivi e que compartilhei com você, que começava a criar possibilidades. Nós dois prosseguimos. Você no mundo, eu enquanto escrevo.

Mas cartas são somente para momentos alegres? Essa pergunta ainda não sei responder. Você parte agora em uma nova jornada e eu sigo com reflexões. Ficamos no seu apoio, mesmo à distância, a inventar razões para estarmos juntos. Mensagens sempre são pretextos. De todas as que “enviei” e também dessa primeira carta, vou escrever para celebrar sua jornada: “Alô, alô, marciana. Aqui quem fala é da Terra. Pra variar, estamos em guerra.” [1]

Também vou fabular sobre locais vistos nas suas fotos e vídeos. Quem sabe, falar o que cada lugar tem a ver contigo. Escritores não precisam de motivos e nem mesmo estar presentes. A literatura transcende. Mantemos a originalidade na forma: Manu, além de uma ilha, você é um país. Eu sou um país, todos nós somos uma parte interligada ao todo.

Temores e consciência 

Gosto do termo “gentes” (no plural), que se refere a povos e fala muito sobre toda a humanidade. Das gentes que se acumulam em nós. Gene, raiz, fonte, princípio, essência, gérmen. Somos “todos em todos”, mas alguns querem destruir as conquistas civilizatórias oriundas do Iluminismo. Impõem opressões, fanatismos, todos os tipos de preconceitos, a criminalização do que cada um é: múltiplo e único. Em um paradoxo, a realidade está contaminada pelo chamado neoliberalismo, que monopolizou o sangue. Convencionaram, Manu, que existem mortes “injustas” e mortes “justas”, de acordo com a cultura, a história e a origem do corpo.

Inevitável, vou também falar dos meus temores. Você conhece bastante desses medos. Falar disso logo na primeira carta me parece fora de propósito. Mas sem essa franqueza, cartas não são válidas. 

Meus medos, apesar de toda a minha vibração ao contrário, jorram da minha perda de fé nos seres humanos. Dos avatares do poder e seus seguidores sarcásticos, que desconhecem a responsabilidade que temos diante do Cosmo (chame como quiser). Sim, Manu, a mentira venceu em todo o planeta.

O mundo está em guerra em muitos lugares. Sem ironia, todas as passeatas pela paz  não foram suficientes para evitar as matanças que continuam por todos os cantos. Aquela conversa, muitas vezes bem-intencionada, de que “a paz começa dentro da gente” não encontra eco nas ruínas e nos sorrisos sinistros dos gabinetes da destruição.

Poder, dinheiro e terra. Em muitos casos, a maldade na sua essência. A “banalidade do mal” [2], de Hannah Arendt. Sim, em alguma medida, podemos repeti-la. Egoísmo, ambição, ganância, usura, inveja. Um “salve-se quem puder” compartilhado em redes. Mas o que me sobressai mesmo é a indiferença, enquanto tantas pessoas morrem na Ucrânia, Rússia, Gaza, Irã, Israel, Iêmen, países da áfrica. Corpos voam, o fogo cai do céu: a extinção é perpetrada pelo mal.

Levantar pela manhã, trabalhar, viajar, levar uma vida normal pode nos parecer possível e obrigatório. Mas nada pode impedir termos consciência do que acontece com as pessoas em muitos lugares no mundo — pessoas comuns, como nós.

Manu, são muitos os meus temores e preocupações. Sugiro hoje — e todos os dias — um pensamento elevado. Mesmo que isso não evite o mal, mas que seja suficiente para um breve momento de amor.

“Cheque a ignição, e que o amor de Deus esteja com você.” [3]

Fique bem, filha.

 

Notas da carta, ou carta com notas:

[1] Referência à letra da música “Alô, Alô Marciano”, de Rita Lee / Roberto de Carvalho.

[2] A banalidade do mal, de Hannah Arendt, é um conceito que fala da capacidade de pessoas comuns, sem necessariamente serem maldosas ou sádicas, de cometer atos terríveis. O tema foi retratado no livro Eichmann em Jerusalém, de Arendt.

[3] Referência à letra da música Space Oddity, de David Bowie: “Check ignition, and may God’s love be with you (two, one, lift off)”.

Sempre quando Manu viaja, recebe muitas cartas minhas. Isso já é um hábito entre nós

 

Imagem de Rosy / Bad Homburg / Germany por Pixabay

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