Por Manoel Fernandes Neto |
O que eu tenho são as minhas memórias, nada mais do que isso. 60 anos para eu vasculhar em todos os seus cantos, em seus escaninhos, prateleiras, embaixo dos panos, em vãos de escadas, dentro de panelas ou naqueles quartos que ainda estão fechados. Estou sempre a procurar algum ato, detalhe, palavra, atalhos que passaram despercebidos, alguma coisa que eu nunca mais falei; esquecimentos — momentâneos ou definitivos.
Não possuo carro forte, cofres. Não tenho latifúndios, coleção de carros antigos, móveis raros, somente memórias: o que aconteceu junto a amigos que encontrei, adversários que fiz, aquilo que eu não pude evitar e aquilo que eu fiz diferente, conquistas e decepções. Só isso, nenhum tipo de riqueza material, nada que possa levantar a cobiça, que possa desabar por tempo de uso, algo que só se perde quando se esquece ou não é lembrado, não é escrito, não é contado ao outro.
Tudo que eu escrevo tem a ver com minhas memórias; pode ser uma carta, um conto, um bilhete. Pode ser um alfarrábio, pode ser algumas linhas em papéis que foram amassados antes mesmo da revisão ou nos cadernos de capa preta que mantenho, com letrinhas pequenas a lápis. Às vezes, modifico algumas memórias, finjo que é ficção, mas no fundo é memória mesmo, sem receios, na confusão das minhas convicções.
Minhas memórias moram em variados locais — fora ou dentro de mim: pode ser na letra de uma canção, pode ser no palco junto ao meu artista preferido ou nas linhas daquele romance que me marcou ou ainda no filme que não sai da cabeça. Cohen, Roth, Vonnegut. O fantasma de Springsteen, os alienígenas de Villeneuve. Em todos esses lugares, estão minhas memórias.
Encontrei uma memória outro dia. Uma foto imponente — “Cabelo ao vento, gente jovem reunida” — barba cerrada, camiseta último tipo. Lembro bem desse dia, cabeça repleta de planos, todos concretizados; meus olhos repletos de cores, todas mimetizadas. Estava na laje de um prédio, olhava ao infinito, aquilo que eu seria ou desistiria, o que assumiria como meu ou descartaria sem apego; era uma foto colorida, como tantas memórias, uma cor viva, quase um contraste indecente com o que sou hoje.
Memórias também são assim ou servem para isso, revisar os caminhos escolhidos: como foi avassaladora cada conquista ou deprimente cada queda — ou ainda como se fosse possível começar de novo em algum ponto, como se não insistissem repetições imprevisíveis. Horas se passam, dias se multiplicam, anos se acumulam. As memórias às vezes são claras, às vezes enigmáticas, às vezes me ignoram. Algumas, grandiosas, outras simplórias. Todas minhas, intransferíveis
Que continuem assim.