Plínio Marcos, 90 anos: encantos e ficções

Por Manoel Fernandes Neto

Acima, Plinio Marcos (1970) em foto da Biblioteca Nacional disponibilizada na Wikipedia

Descubro, pela saborosa coluna “Andanças na metrópole”, publicada regularmente por Vicente Vilardaga na edição online da Folha de S.Paulo, que o dramaturgo Plínio Marcos completaria 90 anos neste mês de setembro de 2025. O texto “Comprei um livro das mãos de Plínio Marcos” fala da experiência do colunista ocorrida no Centro Cultural São Paulo em 1983. Era um evento do grupo paulistano Premeditando o Breque. A obra, comprada das mãos do “autor maldito”, foi Madame Blavatsky.

O texto de Vilardaga apresenta diversos aspectos da vida e obra de Plínio Marcos, que se autodefinia como “camelô da literatura”. Foi perseguido pela ditadura militar e consagrado por obras como Barrela, Navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja, entre tantas outras. O texto conta também sobre o processo artesanal de produção dos seus livros, que ele participava diretamente, além de seu esforço para vender “de porta em porta” sua obra.

Diz Vicente Vilardaga:

Quem comprava um de seus livros em algum ponto da cidade reconhecia que aquilo era uma forma de resistir à opressão. Muitos sabiam de sua condição de homem implacavelmente perseguido. Além disso, era um excelente vendedor. Dava autógrafos e estava sempre disposto a conversar com seus clientes. Falava de política, da obra que estava vendendo e sentia prazer em trocar ideias e debater. (Leia o texto: Comprei um livro das mãos de Plínio Marcos – 09/10/2025 – Andanças na metrópole – Folha)

Um pouco mais de pesquisa, ainda na Folha, me leva a uma matéria publicada por ocasião dos 100 anos do jornal: um perfil de Plínio Marcos, que havia mantido colunas por duas oportunidades, nos anos 1970 e 1980. Com histórias “da quebrada”, o espaço trazia variados temas, com estilo próprio: crônicas, poesias, entrevistas, episódios da rua. “Retrato das cidades”, explica o dramaturgo Oswaldo Mendes, autor de Bendito Maldito – Uma biografia de Plínio Marcos (ed. Leya). “Plínio não ficava só no fato, tinha uma abordagem mais humana nos textos para o jornal, o que lhe conferia universalidade e atemporalidade.”
(Leia: Plínio Marcos escreveu crônicas ‘da quebrada’ para Folha dos anos 1970 – 31/08/2021 – Folha 100 anos – Folha)

Falar de experiências pessoais pode parecer subterfúgio menor quando se escreve um texto. A bioficção — estilo criticado, mas com boas experiências literárias de diversos autores — pode ser polêmico. Mas como evitar interesses já vividos com livros, filmes, músicas, pessoas, uma foto, uma cena, um amor, um autor, um beijo, uma praça, um show, um encontro? Tudo se transforma — a memória é a grande (não única!) aliada de obras, ficcionais ou não. E deve ser assim, em tempos estranhos, com excesso de sinais trocados e conteúdos desconexos.

Um livro com duas peças

Lapsos do universo

Algumas histórias são guardadas em escaninhos mentais, pensando que uma simples coluna não seja o local ideal para determinada vivência; reservando-as para rios mais caudalosos como livros ou odes. Mas, às vezes, a lembrança traz algumas de todas as coisas que queremos escrever antes de morrer.

Cresci também em Santos — terra natal de Plínio Marcos. Na cidade, cursei faculdade de Comunicação Social no começo dos anos 1980. Éramos universitários que amavam uma grande variedade de outros “malditos”, com os quais gostávamos de nos manter próximos, parecer amigos íntimos. Para isso, poderíamos ler seus textos em performances etílicas em algum bar vizinho ao campus, ou em rádios alternativas — sejam feitas por um megafone ou por um transmissor clandestino no alto do morro, o maior da cidade portuária. Ou em rotas por ruas movimentadas do centro, com suas casas noturnas e seus variados personagens: marinheiros, curiosos, amantes de todas as idades, bailarinas, jornalistas, agentes culturais e aprendizes de escritores; ao som de apitos dos navios que chegavam e partiam.

A frase foi rápida, a caligrafia ágil como um espadachim experiente.

Todavia, não é desse ambiente que eu resgato minhas memórias com Plínio Marcos. Elas surgem uma década depois, em agosto de 1994, na Bienal do Livro de São Paulo, no Parque Ibirapuera, onde eu e Cris Fernandes, minha companheira de vida, encontramos pessoalmente o escritor.

Naquela tarde, Plínio conversou conosco pacientemente. Falou daquele momento feliz de pavilhão lotado e oportunidades, deu risadas autênticas, contou alguma história que eu não me lembro; mostrou diversos livros, falou de Santos, ou das ruas de São Paulo, ou de qualquer outro lugar — quem se importa com os meus lapsos?

Tenho certeza, ou nem tanto, que havia fila esperando terminar nosso breve encontro. Ou não havia ninguém à espera de nossa conversa, a resgatar lembranças que nunca tivemos, sobre esquecimentos, lugares que nunca existiram, ou que poderiam ser considerados como reais, ou pura ficção — porque é disso que se trata a vida.

Plínio falou das cartas do tarô, de seu poder místico; ofereceu-se para tirá-las para nós, sorrimos novamente. Ele nos entregou seu cartão, ficamos de ligar: não ligamos. Ele escolheu o livro: “leva esse”; eram duas peças: Homens de papel e Barrela. O autógrafo, lembrou Cris. Instantâneo, sacou uma caneta, deve ter dado uma piscadela para mim, como uma provocação inocente — heróis são assim! A frase foi rápida, a caligrafia ágil como um espadachim experiente: “A bela Cris”, seguido pela sua assinatura. Nos abraçamos, emocionados, celebramos bons votos e aquele “a gente se vê” que nunca se concretizou. Nos olhamos ainda por breves momentos, sem dizer nada. Fomos nos dissipando como imprevisíveis brumas.

Voltamos para casa em silêncio. Durante um tempo conversamos sobre o episódio, depois colocamos o livro na estante — onde ficou como um encantamento sem fim, como memória inconteste, a ser revelada em algum universo.

 

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