Por Manoel Fernandes Neto
Algumas mensagens são silêncios que surgem de todos os lugares. Incontroláveis, são fragmentos de acontecimentos injustos e dolorosos, ao sabor da arte e da cultura, temperados com messianismo político. Telas e livros. Um mundo por vezes não tão pop; pensamentos que ainda resistem, apesar dos feeds. Textos: curtos e longos, densos e leves. “Nariz de cera” é hábito duvidoso. Intróitos e conclusões não são excludentes.
Particularmente, em qualquer formato ou meio, gosto de textos longos, relevantes em sites responsivos com fontes grandes para minha visão embaçada. Mas admiro também a força do argumento enxuto, em um mundo com tantos ruídos e distrações; algo para ler no trabalho, no coletivo ou no Uber, na sala de espera do consultório, ou na repartição: 1,5 ou 2 laudas, entre tarefas. O digital, por si só, exige multi-sincronismos do leitor, com “suítes” propícias — outro antigo termo no jornalismo.
Existem cenas insistentes. Na televisão vemos políticos que negam ser fascistas, mas são adeptos da necropolítica. Para quem não sabe, necropolítica é a política de corpos empilhados e de outros que serão empilhados; pobres, pardos e pretos em sua maioria. Necropolítica é comemorar carnificinas: “bom é morto”; se você acha normal tantos cadáveres para conter a violência, é porque perdeu o resto da sua humanidade. “Ain, quero ver você defender bandido se a vítima fosse a sua família”, bradaria o tiozão nos almoços em família, se ainda existissem almoços em família.

Aprendizados e pornografias
Recentemente li uma coluna do escritor Sérgio Rodrigues na Folha de S. Paulo; ele escreveu sobre determinado espectro político que explora um tipo de solução simplória, que Rodrigues compara à “pornografia” — e que recebe o aplauso de parte da população. O colunista oferece muitos exemplos para sua tese. “Facções criminosas substituem o Estado em grande parte do território urbano? A solução é o extermínio do maior número possível de seus bagrinhos, com desprezo pelas baixas colaterais.” O autor detalha com competência: “O negócio aqui é vender respostas muito simples — falsas, mas atraentes — para questões complicadas. Desemprego? Culpa dos imigrantes. Violência urbana em alta? Arme-se o cidadão. Pandemia? Vida normal — e cloroquina!” (Leia aqui)
Apesar da dificuldade diante de tanta desfaçatez e do desafio de amarrar tantos assuntos, sobrevivo. Devemos investir continuamente no aprendizado do uso das palavras, em ficção ou não ficção. De Sérgio Rodrigues, recentemente também concluí a leitura de seu saboroso livro “Escrever é Humano” (Companhia das Letras). Na obra, destinada a quem pratica o ofício da escrita em alguma medida, ele fala sobre as agruras e os prazeres do antigo ofício. Com dicas preciosíssimas para quem procura aprimoramento.
“Tentativa e erro, escrever e reescrever, serão sempre processos indispensáveis. Contudo, tanto o escrever quanto o reescrever podem e devem ser guiados por alguns objetivos gerais, e entre estes o mais importante é o de tornar a história particular, concreta, tangível, irrepetível, única — porque aconteceu de acontecer bem daquele jeito, com aquelas pessoas, naquele tempo e naquele lugar.”

Privilégios no cinema
Somos constantemente usurpados pela crueldade. Novamente surge em todas as mídias uma sequência de imagens da operação policial em duas comunidades no Rio de Janeiro. Um rastro de 121 mortos. Foto de Tânia Rêgo, da Agência Brasil, chama a atenção, entre tantas outras chocantes. Nela, funcionários resignados da Prefeitura lavam, com caminhão-pipa, o local em que antes foram perfilados corpos. A água leva o sangue: marcas são lembradas; mas é impossível que possamos mudar rapidamente para outros temas, forçar um esquecimento. É inútil lavar a vergonha de uma sociedade que volta aos seus afazeres e memes. A resignação da imagem se impõe; significados e significantes se misturam. Uma voz interior clama: “Ei, privilegiado, você sabe o que está ocorrendo?”
Corte rápido. Uma sala de cinema. Novas mensagens. Domingo à tarde, quase ninguém além do colunista com a filha e a esposa; ar condicionado no máximo, eu a ponto de desistir — “deixa que eu resolvo, pai”. Na tela, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido”, uma cinebiografia. Para quem esperava a história de um disco — Nebraska, belo por sinal —, surpreende-se com o caldo da realidade da vida de um astro criador, como chamam, e do que se é obrigado a ser pelo sucesso. A meta não é a arte, mas a consagração incessante. Mostram o artista, Bruce, às voltas com suas ansiedades, solidões, fantasmas, quase depressão, sua não aceitação do status quo. Uma história tomada de vácuos do passado, flertes com o abismo.
Geleias sólidas
Volto aos textos. Lembro de alguns dos meus livros de afeto, alguma raridade sentimental que guardo como “legado”: Torquato Neto e o seu “Os Últimos Dias de Paupéria” (editora Max Limonad, edição 1984). A obra traz uma coleção de artigos, poemas, rabiscos, anotações, fac-símiles, colunas, recortes de jornais, desenhos que traduzem sua carreira, sua vida, seu estar no mundo.
O autor, um dos maiores poetas e letristas brasileiros, ocupa uma das mais icônicas fotos da cultura brasileira, o LP “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968). Torquato apresentava as palavras conforme elas surgiam, sem escape, um jorro incessante. Labirintos e caminhos, em seus belos poemas, mas também na coluna “Geleia Geral”, publicada no jornal Última Hora do Rio de Janeiro entre 1971 e 1972. “Geleia Geral” é termo criado pelo poeta concretista Décio Pignatari para retratar a ebulição criativa de uma época, termo que também é nome de música em parceria com Gilberto Gil. E quem não dança não fala; assiste a tudo e se cala; não vê no meio da sala; as relíquias do Brasil.

Torquato Neto viveu seu tempo como um pensador vibrante, mutante a cada oportunidade. Louco equilibrado. Prolixo breve. Foi pura criação: a poesia “Go Back” foi musicada por Sérgio Britto e gravada por diversos artistas e bandas: Você me chama. Eu quero ir pro cinema; você reclama; meu coração não contenta; você me ama; mas de repente a madrugada mudou; e certamente; aquele trem já passou e se passou; passou daqui pra melhor, foi!
Mas o poeta é um fingidor, como disse Fernando Pessoa; e Torquato, em uma dessas “geleias”, desafia versos e toadas, põe em dúvida suas próprias citações, como que desafiando a si mesmo. Seu texto sabe que a arrogância está apartada da criação; o escritor tem autoridade e insegurança de suas escolhas, traz ao leitor a humanidade necessária, mas também a vileza, errando, acertando, corrigindo, levando ao limite cada palavra:
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Levar ao limite é a tônica de toda a obra “Os Últimos Dias de Paupéria”. As mensagens são desafiadoras, ocupam a mente do autor: caleidoscópios incontroláveis, conscientes, como deve ser um texto visceral, contracultural, destemido, para o espanto surgir. Sutil terremoto.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não dá, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
Oximoros. Morte viva, integridade recortada, nitidez nebulosa, mensagens que se impõem pelo contraditório, medo audacioso, geleia material. Oximoros. A consagração de um falso conflito, que o escritor Sérgio Rodrigues, em “Escrever é Humano”, exalta como a “conciliação de opostos” ou o que “habita dois tempos simultâneos”. Para o escritor, “é uma verdade feita de fábula, um delírio medido; requer cálculo e sonho, desfaçatez e candura, marra e humildade, planejamento e acaso. Exige uma autoconfiança insana e uma autocrítica impiedosa.” Ou ainda: “assim, inventando mentiras, conta verdades que a verdade já não consegue contar.” Diz, Rodrigues:
“Sendo um jogo que se faz com a linguagem, só presta se for além da pura expressão da pessoa que escreve — e no entanto, por mais véus e máscaras que contenha, sempre termina por revelá-la. Assim, inventando mentiras, conta verdades que a verdade já não consegue contar.”
Para concluir a coluna, a voz de Torquato Neto ecoa. Sereno choque. Revelador enigma: “E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.”
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Notas
– Define-se o termo “suíte” como “reportagem complementar que atualiza fato anteriormente noticiado”. Em relação ao termo “nariz de cera”, refere-se a uma “introdução às vezes longa e desnecessária que antecede a informação principal”.
– O relatório “Pele Alvo: crônicas de dor e luta”, divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança, informa que “86% das vítimas das ações policiais, quando a cor é informada, são negras ou pardas.”
86% dos mortos pela polícia de 9 estados eram negros, diz estudo | Radioagência Nacional
– Transcrição da coluna Geleia Geral, de Torquato Neto, publicada em setembro de 1971, com o título “Pessoal Intransferível”.
Publicado simultaneamente no Jornal GGN
Mensagens, metáforas e geleias que se impõem, por Manoel Fernandes Nt