Querida Manu,
Li sua coluna sobre Dublin e também chorei; não contenho as lágrimas em algumas situações: nas alegrias ou nos desalentos, nas conquistas ou perdas. Esse seu texto sobre amizade é uma ode à liberdade de caminhar, sabe? É a arte do encontro e do reencontro. A viagem é isso — na terra ou metafisicamente —: descobrir que cada pessoa é um “lugar”, e seu significado vem em pequenos atos e paisagens que procuramos como nossas. Novas emoções sob um novo céu. Já falei também: partir é um exercício de saudades de cada lado do Atlântico.
Aqui todos estão bem, na pressa de sempre. No trabalho que tanto exige de todos nós, inclusive de você, que mesmo viajando ainda cria conteúdos — para você e outros perfis —, faz reuniões, orienta, decide. De certa forma, a jornada também é isso, e eu não vou “posar de valentão” ao dizer que as tarefas diárias possam ser descartadas. Todos precisam de subsistência. Olho tudo isso como propósitos em sintonia com nossas convicções. O trabalho também é um propósito — assim como escrever, criar, admirar a arte, sorrir com boas histórias, ser um leitor plural, estudar aquilo que realmente gosta.
Veja sua mãe — nossa amada Cris —, sempre inventando algo: uma colagem, um desenho, uma pintura, um aprendizado novo, um jardim, um curso sobre novas tecnologias. Sempre olhando ao redor, como criadora de caminhos e destinos — que pode ser um texto, uma postagem, ou mesmo aquela receita de família, que ela retira de um caderno envelhecido, herdado da sua avó Zélia, com caligrafias diversas. Surpreendente alquimia que nos impressiona e nos reúne em torno da mesa, ou da fogueira, ou naquele sol frio do inverno, quando esfregamos as mãos em excitação irresistível.
Rafinha está na busca de sempre. Aos 17 anos, um universo ergue-se à sua frente, e ela procura desvendar com a independência e inteligência que lhe são natas. Sente saudade sua, lógico — todos sentimos —, mas ela, em especial, por motivos óbvios. Ter irmãos e irmãs pode fazer a diferença, mas devemos lembrar que graus de parentesco são apenas classificações que podem ser aplicadas a todos que nos são próximos — na cidade onde moramos ou no mundo.
Manu, estar onde quiser é um imperativo de todas as pessoas, independentemente do gênero e das crenças. Ninguém pode apontar o dedo, patrulhar de forma vazia listando condições, como ser mulher, ou ter passado dos 60, ou que não é seguro andar por aí, que bom mesmo é estar dentro de uma caixa. Não, Manu, você sabe, eu sei, todos com consciência sabem: perigos nos rodeiam, mas isso não pode nos impedir de avançar. Em outra carta falei de bombas que caem, perdas que surgem em um mundo insano. Mas a “violência” também está em não darmos espaço para a VIDA, e tenho pensado muito nisso. Viver é buscar — e pode acontecer em todos os lugares.
Todas as vezes me emociono ao te reencontrar na estrada, a inventar um novo lugar que emociona, que gera amigos e sensações. O próprio “Lumiar”, como nos lembrou Beto Guedes:
Levantar e fazer café
Só pra sair, caçar e pescar
E passar o dia moendo cana, caçando lua
Clarear de vez Lumiar
Amor Lumiar pra viver, pra gostar
Pra chover e tratar de divertir
Descansar os olhos, olhar e ver e respirar
Só pra não ver o tempo passar
Fique bem, Manu.
Fachada em Dublin: foto de Manu Fernandes